terça-feira, 10 de agosto de 2010

Diz-me uma coisa sobre ti e tenho a mania que sei logo tudo a teu respeito

   Este título - "meio" aparvalhado - advém daquelas frases bastante conhecidas como:
- Diz-me onde moras, dir-te-ei quem és;
- Diz-me o que ouves, dir-te-ei quem és;
- Diz-me o que lês, dir-te-ei quem és;
- Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és;
- Diz-me o que comes, dir-te-ei como cagas (kidding! ^^).

Tudo isto só para dizer que, por motivos vários, lembrei-me agora de uma das mais brilhantes crónicas escritas até hoje que 'por acaso' (acho que) se intitula "Diz-me onde moras...". O texto é longo e é de autoria do grande Miguel Esteves Cardoso.


ATENÇÃO: esta é uma junção de duas versões da mesma crónica, não garanto a sua verdadeira e total continuidade.


"Um dos grandes problemas da nossa sociedade é o trauma da morada.
Por exemplo. Há uns anos, um grande amigo meu, que morava em Sete Rios, comprou um andar em Carnaxide. Fica pertíssimo de Lisboa, é agradável, tem árvores e cafés. Só tinha um problema. Era em Carnaxide. Nunca mais ninguém o viu. Para quem vive em Lisboa, tinha emigrado para a Mauritânia!

Acontece o mesmo com todos os sítios acabados em -ide, como Carnide e
Moscavide. Rimam com Tide e com Pide e as pessoas não lhes ligam pevide.
Um palácio com sessenta quartos em Carnide é sempre mais traumático do que umas águas-furtadas em Cascais. É a injustiça do endereço.

Está-se numa festa e as pessoas perguntam, por boa educação ou por curiosidade, onde é que vivemos.
O tamanho e a arquitectura da casa não interessam.
Mas morre imediatamente quem disser que mora em Massamá, Brandoa, Cumeada,
Agualva-Cacém, Abuxarda, Alformelos, Murtosa, Angeja...
ou em qualquer outro sítio que soe à toponímia de Angola.

Para não falar na Cova da Piedade, na Coina, no Fogueteiro e na Cruz de Pau. (...) Ao ler os nomes de alguns sítios - Penedo, Magoito, Porrais, Venda das Raparigas, compreende-se porque é que Portugal não está preparado para entrar na Europa.

De facto, com sítios chamados Finca Joelhos (concelho de Avis) e Deixa o Resto (Santiago do Cacém), como é que a Europa nos vai querer integrar?
Compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia ou na Reboleira não é nada comparado com certos nomes portugueses.
Imagine-se o impacto de dizer "Eu sou da Margalha" (Gavião) no meio de um jantar.
Veja-se a cena num chá dançante em que um rapaz pergunta delicadamente "E a menina de onde é?", e a menina diz: "Eu sou da Fonte da Rata" (Espinho).
E suponhamos que, para aliviar, o senhor prossiga, perguntando "E onde mora, presentemente?", só para ouvir dizer que a senhora habita na Herdade da Chouriça (Estremoz).

É terrível. O que não será o choque psicológico da criança que acorda, logo depois do parto, para verificar que acaba de nascer na localidade de Vergão Fundeiro? Vergão Fundeiro, que fica no concelho de Proença-a-Nova, parece o nome de uma versão transmontana do Garganta Funda.
Aliás, que se pode dizer de um país que conta não com uma Vergadela (em Braga), mas com duas, contando com a Vergadela de Santo Tirso?
Será ou não exagerado relatar a existência, no concelho de Arouca, de uma Vergadelas?

É evidente, na nossa cultura, que existe o trauma da "terra".
Ninguém é do Porto ou de Lisboa. Toda a gente é de outra terra qualquer. Geralmente, como veremos, a nossa terra tem um nome profundamente embaraçante, daqueles que fazem apetecer mentir.

Qualquer bilhete de identidade fica comprometido pela indicação de naturalidade que reze Fonte do Bebe e Vai-te (Oliveira do Bairro).
É absolutamente impossível explicar este acidente da natureza a amigos estrangeiros ("I am from the Fountain of Drink and Go Away...").
Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque a denunciá-lo como sendo originário de Filha Boa. Verá que não é bem atendido.

Há terras com nomes que parecem títulos de livros de Eugénio de Andrade, como Ferido de Água (concelho de Paredes). Há saldos de todas as espécies. Toda a gente conhece o Vale das Pegas (Albufeira) e a Venda das Raparigas (Alcobaça), mas há lugares mais especializados como a Venda da Luísa (Condeixa-a-Nova) e ainda lugares lamrntavelmente racistas, como seja a infame Venda dos Pretos, em Leiria. Com nomes destes, nunca iremos a lado nenhum.

Não há limites. Há um lugar chamado Cabrão, no concelho de Ponte de Lima. Começo assim para não começar a falar logo em Picha, vergonha eterna da freguesia e concelho de Pedrógão Grande. Picha tem as casas mais baratas do país, só porque os potenciais residentes são incapazes de enfrentar uma morada tão rasca. Não é um nome que torne distinto um cartão-de-visita.

Se fosse um caso isolado, passaria, mas infelizmente não é. De facto, para além de Picha, Portugal conta igualmente com dois lugarejos denominados Venda da Gaita. Uma fica em Almoster e outra em Tomar.

Recomecemos a nossa viagem pela nossa terra. Que dizer de um país onde é possível ir de Cabeça Perdida (em Portimão) para a Cornalheira (em Meda)?

Devia haver uma Comissão para a Decência Onomástica, que tratasse nomes como Casal do Gorta Rabos (Alcobaça), Mal Lavado (Odemira), Casal da Porcaria (Leiria) e Ripanço (Proença-a-Nova).

Urge proceder à renomeação de todos estes apeadeiros.
Há que dar-lhes nomes civilizados e europeus, ou então parecidos com os nomes dos restaurantes giraços, tipo: Não Sei, A Mousse é Caseira, Vai Mais um Rissol.

Qual o construtor civil que se sente tentado a empreender a construção de novos fogos em lugares chamados São Paio da Farinha Podre (Penacova), Casal do Esborrachado (Almeirim), Triste Feia (Leiria), Parola (Mafra) ou Farta-Vacas (Lagos)?

No capítulo da ciência, há nomes que fazem sorrir. Mesmo assim, para quem mora neles, devem ser muito maçadores. Há em Chaves um Raio-X e, como se não bastasse, um Entroncamento do Raio-X. Em Alcobaça, em contrapartida, há uma (mais portuguesa) Engenhoca. Continua com Telégrafo (em Tomar) e Arquitecto (em Mafra). Em Grândola, há uma Aldeia do Futuro. Em que outro país europeu é possível sair um dia de automóvel e fazer o trajecto Raio-X, Engenhoca, Telégrafo, Arquitecto, Aldeia do Futuro??!!

Também deve ser difícil arranjar outro país onde se possa fazer um percurso que vá da Fome Aguda à Carne Assada (Sintra) passando pelo Corte Pão e Água (Mértola), sem passar por Poriço (Vila Verde),

e acabando a comprar rebuçados em Bombom do "Bogadouro"¹, (Amarante), depois de ter parado para fazer um chichi em Alçaperna (Lousã). E basta!

¹ - Bogadouro é o Mogadouro quando se está constipado! "

Sem comentários:

"Para ser grande sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive."
R.Reis