sábado, 21 de abril de 2012

o rosto muda caras

Vi na cara dela que não estava bem, estava pálida, estava roxa, estava com um ar doente. Vinha de óculos escuros a esconder umas olheiras carregadas que nunca foram dela.
- Não está tudo bem, o que é que se passa.
- A uva.
- Anh?
- A uva-passa.
- Não comeces. Queres falar?
- Se quisesse, não tinha começado.
Quando quer fugir a algum assunto faz piadas. Sempre foi assim a Eduarda. Sempre lhe achei graça.
- Está frescote.
- Ai poupa-me a esses desbloqueadores de merda!
- Costumam chamar-lhes "desbloqueadores de conversa" mas tu tens sempre de ser diferente não é?
Não responde. Bebe o café que pediu num só trago. Okay, não está nada bem. A Eduarda nunca bebe o café assim. Para ela há um ritual: o café chega, ela espera, enrola um cigarro, empata com conversa, dá um pequeno golo. Ainda está quente. Acende o cigarro, conversa. Só depois começa a acompanhar o cigarro pelo seu café. Diz que se beber o café muito quente dá-lhe caganeira e não gosta de cagar em casas-de-banho públicas, "é uma maçada!".
-Bebeste rápido o café.
- Não estava quente.
Mentira. ainda consigo ver o fumo a esvoaçar da chávena. Sigo o seu percurso. Páro-lhe na cara. O cabelo está descuidado. Embaraçado, despenteado, com raízes. Não me lembro de ver a Eduarda assim. Sempre a conheci importada e bem arranjada "mas eu não fui sempre assim", dizia, "antes cansava-me arranjar, preparar... Só comecei a pintar o cabelo há seis anos e antes vestia a primeira coisa que via, estivesse passada ou por passar, lavada ou por lavar!". "Ainda bem que mudaste", dizia-lhe, "não me ia conseguir dar com um desastre desses". E agora? Ali estava Eduarda, descuidada, na minha frente, cara a cara e eu sem saber lidar com ela. Mas eu disse-lhe, ao menos avisei que não saberia lidar com aquele farrapo.
- Ó Eduarda, vais-me desculpar.
Tomei coragem.
- Não consigo ignorar esse teu estado. Não te via há duas ou três semanas e aconteceu isso tudo?
- Mas isso tudo o quê? Não aconteceu nada!
- Nada não! Não sei mas deve ter sido uma infinidade de coisas para estares dessa maneira...
- De que maneira?
- Presumo, como me disseste teres um dia sido. Quando não tinhas dinheiro nem ninguém que te apoiasse.
Eduarda paralisou. Pousei a minha chávena e tentei aproximar-me do braço pousado na mesa. Afastou-o. Mordeu o lábio e cobriu o rosto com a mão.
- Fugi de casa. - Disse com a voz trémula. - Traí o Zé e fugi. Voltei agora porque preciso de ti.
Não consegui dizer nada. Estava completamente sem reacção e sem saber o que dizer.
- Precisas de mim? Precisas de ajuda? Arrependeste-te? Queres ficar lá em casa?
- Não. Tu não percebes.
- Então não é nada disso? Queres ficar com essa pessoa e queres que vá lá a casa buscar alguma coisa? Queres que fale com o Zé? Quer...
- NÃO! Pára! Preciso de ti é para a vida! Quero-te a ti.
E, a partir dali, o meu rosto mudou.

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"Para ser grande sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive."
R.Reis